Do livro Firmim, cheguei a uma dúvida sobre os 17 tipos de desespero humano. Da pesquisa sobre desesperos humanos, cheguei a esse texto, que abre as portas de várias outras séries de questionamentos.
O Desespero Humano e crises existenciais: uma visão de triunfo em Sören Kierkegaard
Por Marco Antonio do Nascimento Sales / Psicólogo e Psicoterapeuta Existencial / Professor-Adjunto da SAEP / CRP 05/22.205
Estamos nos aproximando do Século XXI e, o mundo à nossa volta parece estar de pernas para o ar. É fato que durante o presente Século, tivemos a oportunidade de contemplar um crescimento incomensurável da tecnologia. Temos o microcomputador fazendo verdadeiros milagres no mundo da informação, assistimos o aparecimento da telefonia celular móvel, o laser que muito tem contribuído para a otimização de cirurgias extremamente delicadas.
Porém, diante de tanto avanço tecnológico, temos também, um Século marcado pela violência e degradação do ser humano. Tivemos dois grandes conflitos mundiais, várias guerras isoladas, milhares de agressões e atitudes que causam profunda perplexidade. Assistimos horrorizados pela televisão o massacre dos albaneses na Iugoslávia, a morte de estudantes no Colorado, Estados Unidos da América, o assassinato dos "Sem-Teto" aqui em Minas Gerais, além desemprego, fome, e tantas outras situações que evidenciam profunda dificuldades. Talvez você me pergunte: "Como todas essas constatações podem ser relacionadas com o tema desta palestra?" Se você me der alguns minutos da sua atenção, creio, que poderei demonstrar, quão pertinente é a questão do "Desespero Humano e Crises Existenciais" para nós que vivemos este momento no planeta Terra.
Sendo assim, eu quero trazer para vocês uma elucidação sobre a perspectiva acima, usando, segundo minha interpretação, aquele que dedicou muitas horas para refletir sobre o desespero humano, o filósofo dinamarquês Sören Aabye Kierkegaard. Que com muita propriedade fala do "DESESPERO", não como uma questão filosófica somente, mas também como um problema concreto do dia-a-dia. O existencialismo, que com ele se inicia, é um voltar-se para a concretude do indivíduo, para a sua singularidade e particularidade, na linguagem de Heidegger para o "ser-no-mundo". Ele (Heidegger), apresenta, para nós, o ser humano como aquele que se encontra numa situação, num círculo de afetos e interesses no qual o homem se acha sempre imerso, porém, nunca preso a ele. Pois, ao contrário, o ser humano sempre está aberto para tornar-se algo novo, sempre está para além da situação na qual se encontra. É um eterno rascunho, projeto ou esboço, um ser inacabado.
E, é aqui, que eu vejo o encontro entre aquilo que Heidegger disse e o legado de Kierkegaard acerca do "Desespero Humano". A este eu denomino de "A VISÃO TRIUNFAL DE KIERKEGAARD SOBRE CRISES EXISTENCIAIS".
O fundamento sobre o qual eu vejo o assunto citado, é o livro que Kierkegaard escreveu 1849, cujo título era "Desespero Humano - Doença até a Morte". Na minha visão uma espécie de estudo básico, onde o filósofo procura refletir sobre o significado do desespero, ou melhor, dos desesperos e como podemos lidar com eles de uma maneira otimizada para a nossa existência. Diante das observações do cotidiano que fiz acima, mencionando que vivemos uma momento de desespero mundial, pergunto: "Serão tais situações que nos fazem desesperar? Será está influência do meio externo que esmaga o horizonte dos homens para a visualização da felicidade?" De certo modo, talvez. Mas , após a leitura do texto de Kierkegaard, percebi, que o "DESESPERAR" é muito mais do que um fenômeno social, é também uma questão emocional, que nos leva ao fracasso ou ao triunfo.
Todavia, surge a indagação: "Triunfo ou fracasso sobre o quê?" Sobre as guerras? Sobre o desemprego? Sobre a fome? Sobre as dificuldades financeiras? Sobre a violência? Talvez. Contudo, quero deixar com vocês uma citação dos sábios orientais como forma de reflexão, para que possamos avaliar sobre o quê poderemos triunfar no que diz respeito ao "DESESPERO HUMANO", falavam eles: "Um homem no campo de batalha conquista um exército de mil homens. Um outro conquista a si mesmo - Este é o maior" (Dhammapada, S. "Insight Meditation". Committee for the Advancement of Buddhism, London, 1967, pg. 75)
Pelo que eu percebi, é justamente desse aspecto que Kierkegaard fala sobre o desespero humano. Para ele isto era um processo de conquista do próprio eu, uma oportunidade de sermos nós mesmos, uma espécie de trampolim que auxilia o indivíduo a chegar a uma existência mais plena. Pois, como disse Kierkegaard: "Todo desespero é fundamentalmente um desespero de sermos nós mesmos". Então surge a indagação: "O que é o desespero na visão de Kierkegaard?" No seu texto ele ressalta alguns tipos de desespero, porém, eu quero comentar apenas sobre dois deles, a saber: 1- O desespero pelo desejo de não ser um eu próprio - denominado de desespero-fraqueza. 2- O desespero pelo desejo de ser um eu próprio - denominado de desespero-desafio;
Para Kierkegaard o homem em desespero tem o costume de se considerar uma vítima das circunstâncias, porque o desespero revela a miséria e a grandeza do homem, pois é a oportunidade que ele possui de chegar a ser ele mesmo, chegar a ser um eu próprio. O desespero é algo universal para Kierkegaard. Todos os homens vivenciam o desespero, mesmo não tendo consciência plena dessa situação.
A pessoa mais complacente consigo mesma, é aquela que não se dá conta das suas dificuldades. Quando chega a "CATÁSTROFE" ou "A CRISE", ela passa a se ver num estado que é próprio do ser humano, ou seja, perceber-se em desespero, desamparado e abandonado à sua própria gerência. Para Kierkegaard esse momento é salutar , pois a crise que se mostra com o desespero pode levar o indivíduo à "cura", mas pode ser seriamente perigosa se o indivíduo não quiser dar conta de si próprio, ou seja, tornar-se ele mesmo. Aqui percebo que o filósofo dinamarquês mostra um sentido mais próximo do original da palavra crise (krisiV) . Que é derivada do verbo grego krinô (krinw) que significa separar, julgar, decidir, considerar, avaliar, selecionar e escolher. O desespero, enquanto momento de "crise" é uma hora de escolha. Sendo ela, expressa em atos. A "cura" é, a princípio, como eu deixei transparecer, o dar-se conta do seu próprio desespero, sendo a "doença" a negação ou a intenção de não ter consciência deste estado.
O homem que enfrenta com coragem, primeiramente, o ato de ver o seu desespero não está longe da "cura". Dizia Kierkegaard: "Quem desespera não pode morrer". Porque, quem se desespera acerca si próprio, quem desesperadamente deseja libertar-se de si próprio, ao invés de extinguir-se, se refaz, torna-se um novo "eu". No desespero-fraqueza, aquele que se fundamenta na intenção declarada do indivíduo de não ser ele mesmo, o que se apresenta é uma profunda negação. A pessoa não quer e nem se permite ver quem ele está sendo em dado momento da sua vida. Kierkegaard afirma, que o indivíduo que vive nessa esfera "Não percebe nada da existência, aprende a imitar os outros e a maneira de se arranjarem para viver... e ei-lo vivendo como eles." (KIERKEGGARD, Sören Aabye. "Desespero Humano - Doença até a Morte". São Paulo, Ed. Abril Cultural, Os Pensadores, 1979, pg. 232 e 233). A pessoa que procura andar nesse caminho, se perde na fantasia e lança o seu olhar para o genérico ou universal, para aquilo que todos são, tornando-se uma pessoa modelada, padronizada e conformada, que apega-se às convenções, abre mão dos seus interesses, procura não ter consciência dos conflitos pelos quais passa, enfim, vive uma vida que não é de sua própria invenção, mas dos outros. Kierkegaard dizia, que é possível que esse tipo de indivíduo tenha êxito e sucesso material, mas apesar de tudo, apesar de ter uma vida normal aos olhos do mundo, não conseguiu ser um eu de sua própria criação, ser ele próprio. E isto, trará um profundo vazio, que não poderá ser preenchido por qualquer coisa, a não ser, pela decisão de auto-construir-se, de fazer de si um projeto da sua própria determinação.
O que leva esta pessoa a não vivenciar as suas possibilidades? É a sua incapacidade de obedecer, de se submeter a si próprio, às suas fronteiras interiores. A infelicidade de um tal "eu" não está em nada feito neste mundo, em nada exterior a si mesmo, mas consiste na sua não tomada de consciência daquilo que ele próprio faz consigo mesmo. O desesperado enfraquecido, pode materializar a sua auto-negação, usando possibilidades relacionadas a coisas que estão fora do seu alcance, ou mesmo, ficando parado, congelado, estático diante de possibilidades fantasmagóricas que ele coloca para si como se fossem suas. Não conseguindo assim, movimentar-se em direção da mudança, do vir-a-ser um indivíduo de sua própria invenção. (Ex.: um indivíduo que diz para o mundo que ser astronauta é a sua única oportunidade de realização profissional, mas não sabe nada de física, astronomia ou matemática. Não faz parte do programa espacial brasileiro. E nem entende qualquer coisa de navegação aeroespacial. Diante da sua atividade principal, mecânico de automóvel, ele se diz impossibilitado de se fazer diferenciar ou de se realizar, não consegue ver outra coisa ). Isso leva o indivíduo à criar um escudo diante de si, pois uma das suas maiores ilusões, já que ele vive num mundo de pura fantasia é: "SE O MUNDO À MINHA VOLTA MUDAR EU TAMBÉM MUDO". Ele afirma quase que constantemente: "Se tivesse a inteligência de fulano ou as riquezas de beltrano, tudo seria diferente". Ele não consegue se ver como o gerente das circunstâncias da sua própria vida. Por que? Porque, o seu olhar não está voltado para si mas para o outro. Vejam o que Kierkegaard disse sobre isso: "ninguém pode ver-se a si próprio num espelho, sem se conhecer previamente, caso contrário não é ver-se, mas apenas ver alguém." (KIERKEGGARD, Sören Aabye. "Desespero Humano - Doença até a Morte". São Paulo, Ed. Abril Cultural, Os Pensadores, 1979, pg. 212).
Você já pensou nessa postura de vida? Você já imaginou o que é alguém ser completamente estranho a si mesmo? Talvez você possa me dizer: "Isso é impossível!" Mas, diante do exposto por Kierkegaard e, pela própria observação do cotidiano das pessoas, podemos notar o quanto é pertinente tais colocações.
Certamente você já presenciou pessoas que vivem profundamente frustradas, fracassadas e malogradas, apesar de possuírem muitas coisas e muitos bens. Todavia, não possuem algo que é essencial, ou seja, não possuem a si mesmos.
Como é isso? Na própria história de Kierkegaard, podemos ter a exemplificação disso. Esse filósofo dinamarquês nasceu (05/05/1813) num lar abastado, onde existiam ideais e valores morais muito rígidos, ligados à fé luterana. Os quais eram cultivados e fomentados por seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard, que de certa forma incutiu no seu filho a visão de Deus como um grande carrasco. Tudo isso devido a dois fatos verificados na vida do pai do filósofo:
1- Quando Michael era bem jovem e o seu emprego na época, era de pastor de ovelhas nas gélidas colinas da Jutlândia, passando fome e sofrendo imensamente, ali amaldiçoou a Deus. Apesar de ter ido para a capital do seu país, progredindo imensamente, como comerciante rico e próspero, via sobre si a maldição de Deus face àquele ato que ele julgava pecaminoso.
2- O coração de Michael lhe pesava ainda, por se sentir culpado pela sedução de sua futura esposa antes do casamento. Foi dessa relação que nasceu Sören Aabye Kierkegaard.
Estes fatos eram motivos naquela família para explicar a postura melancólica do Senhor Michael Pedersen Kierkegaard. E, tal situação era tão aguda que levou até mesmo o próprio Kierkegaard a encarar que uma maldição pesava sobre a sua família, durante uma época de sua vida.
Isso não seria viver sem se conhecer? Isso não seria uma forma de se torna estranho a si mesmo e não explorar as suas possibilidades existenciais? Esse viver melancólico não era o "esperado" para os membros da família Kierkegaard?
Nietzsche no seu "Assim Falou Zaratustra"( 1891), chama essa esfera de vida de "vivência do camelo", onde a conduta do homem, por não se conhecer a si mesmo é ditada pelo medo, pelo tu-deves e pela disposição imensa de levar pesadíssimas cargas, vejamos o que o filósofo disse: "Todo esse pesadíssimo espírito de carga toma sobre si: igual ao camelo, que carregado corre para o deserto, assim ele corre para o seu deserto".
Quantas pessoas você conhece que vive assim? Carregando cargas profundas, assumindo gratuitamente os problemas dos outros e residindo num verdadeiro deserto, onde só se encontra pedra, pó e o sol escaldante.
Mas, penso eu, que de forma imensamente dramática, o próprio Kierkegaard coloca para si o desejo de abraçar DESESPERO-DESAFIO, que é a aceitação da destruição de si, isto é, a morte do "EU ESCRAVO", para um pular ou arriscar ser, um eu de sua própria invenção. O grande desafio do indivíduo é superar a finitude e a necessidade de ser um eu próprio, construído através das suas forças. E isto, só é alcançado, mediante o "SALTO DA FÉ", que é experimentado mediante a liberdade, a sua própria decisão, sem qualquer influência do outro.
É a verdadeira afirmação da sua própria vontade. É a troca do "Tu-deves" irresponsável, que vimos anteriormente, pelo "EU QUERO" determinante. É o experimentar o que Kierkegaard chama de "Angústia de Abraão".
É neste instante que diante do eu, o campo das suas possibilidades reais crescem e, o indivíduo, sem medo, parte para a procura daquilo que ele quer ser.
O primeiro passo para isso é tomar consciência do seu desespero, ou seja, dar-se conta de que ele vem sendo um eu que ele não quer. Um "EU ESCRAVO". Um eu bastante obediente. Mais uma vez gostaria de citar Nietzsche: "Manda-se naquele que não pode obedecer a si próprio"(Assim Falou Zaratustra. São Paulo, Nova Cultural, 1997, pg. 222). Um eu que se porta de acordo com o esperado. E aqui permitam-me fazer uma digressão(desvio do assunto, evasiva) com o termo desespero. Se olharmos a palavra sobre a forma interpretativa de "TIRAR O ESPERADO OU TIRAR A ESPERANÇA = DES + ESPERO" . Podemos notar, que o indivíduo que se inclui no desepero-fraqueza, sempre faz e fez o que os outros "esperavam" dele. Todavia, aquele que se inicia no caminho do DESESPERO-DESAFIO, pode "TIRAR AQUILO QUE ESPERAM QUE ELE SEJA".
Isso é possível? Isso acontece? Claro que sim! Pessoas há que não assumem o "esperado" delas, mas olhando para si, fazem algo novo, desmistificando todas as expectativas dos outros! Exemplo disso? Helen Keller, que nasceu cega e surda (1880-1968), era "esperado" que ele fosse mais uma criança deficiente no mundo, mais um ser humano com problemas de saúde na eterna dependência do outro, mas ela "tirou o esperado". Através da ajuda de sua professora Ana Sullivan, desafiou o destino que parecia lhe estar reservado e, aprendeu a fazer tudo como as pessoas ditas normais faziam. Venceu a sua crise, isto é, escolheu não se deixar permanecer presa à cegueira, surdez ou qualquer deficiência, antes superar tudo isso.
O que dizer também do compositor alemão Ludwig Van Beethowen, que depois de ter perdido a sua audição, conseguiu escrever uma sinfonia inteira, usando não os sons mais as vibrações destes que faziam no solo de sua casa.
O que eu quero dizer com isso? Quero dizer, que qualquer ser humano, seja ele quem for, pode superar e ultrapassar as situações mais difíceis que se apresentam na sua vida, pois conforme o filósofo alemão Martin Heidegger disse: "O homem é um ser que está para além da sua própria situação".
Por que eu tenho tanta convicção em dizer isso? Porque, eu percebo o ser humano não como uma coisa ou um simples objeto, que vive sendo determinado pelas circunstâncias da vida ou pelo outro. Mas, que tem a possibilidade de em olhando para si mesmo, ousando ser ele próprio, transformar e mudar ocorrências e eventos da sua vida. Irwin Yalon disse que nós não somos livres das influências biológicas, sociológicas, familiares ou políticas. No entanto, ele mesmo afirmou que nós somos completamente livres para lidar com todas estas coisas. Isto ratificando as palavras de Sartre, a saber: "Não importa o que fizeram de mim, importa o que eu faço daquilo que fizeram de mim". O Conferencista Roberto Shinyashiki no seu livro "O Sucesso é Ser Feliz", Editora Gente, página 136 e 137, diz o seguinte: "Você é a pessoa que escolhe ser." (Frank Natale) "Fazemos as coisas sempre da mesma forma porque fomos treinados para agir assim. Repetimos o mesmo comportamento a vida inteira porque foi a maneira como aprendemos e treinamos. Acabamos nos tornando escravos da rotina e, quando somos solicitados a mudar, argumentamos: Sou assim desde criança, é o meu jeito de ser e não vou mudar. A grande verdade é que você é a pessoa que escolhe ser. Todos os dias você decide se continua do jeito que é ou muda. A grande glória do ser humano é poder participar de sua autocriação". Mas, para que isso aconteça, é necessário que a pessoa tenha a absoluta intenção em querer ser ela mesma. E, como nós vimos, o indivíduo que mantém a postura do desepero-fraqueza, em não se permitindo ver-se, sustenta a ilusão que o modelo do outro sempre é melhor, enquanto o seu não é.
Este fato desenvolve uma profunda falta de amor próprio e um desconhecimento das suas reais possibilidades. Ele é um prisioneiro. Prisioneiro dos modelos, das formas, dos "deverias", enfim, um prisioneiro de si mesmo, porque a chave da sua cela está com ele o tempo todo, só que ele se nega a usá-la. O desespero-desafio é uma postura muito diferente da primeira. Nela o indivíduo toma consciência de que o melhor que ele pode fazer por si, é ser ele próprio. Neste aspecto, o indivíduo não se recusa a aceitar o seu eu, porém, procura antes de mais nada conhecê-lo, a fim de que possa aos poucos construir um eu de sua própria invenção.
A consciência de que ele está sendo vai aumentando, ampliando a sua visão de si mesmo e assim proporciona a percepção da sua singularidade. A cada dia este indivíduo se sente desafiado em "tirar o esperado". Em evidenciar que ele é um ser único e singular. Que é ele mesmo, quem deve determinar o melhor para si. O que significa dizer que este melhor para si, é melhor só para ele.
A grande questão da nossa época é uma coisa chamada globalização. Uma espécie de anonimato disfarçado, no qual procura-se diluir as diferenças e singularidades dos povos, dentro de um uniformismo econômico, cultural e social. Dentro dessa visão o humano é apenas mais um mero detalhe, um número.
Esta estratégia de alguns vem implantando até mesmo falsas necessidades nas pessoas como mostrou Herbert Marcuse no seu livro "Eros e Civilização". Quando o outro faz propaganda de carro, camisa, comida ou lazer, é um exemplo claro do que esperam de você e de mim, que possamos aceitar tais coisas como se fossem nossas necessidades. E o pior, é que às vezes as pessoas se sentem frustradas por não atingirem a realização de necessidades que não são suas. O indivíduo que sente o desespero-desafio, que intenciona ser ele mesmo, aprende a dizer não àquilo que não lhe pertence, às necessidades que os outros tentam implantar na sua vida. Ele tem coragem de ser diferente, de assumir que pensa e sente de forma única no mundo. Este indivíduo é mais espontâneo, pois procura estabelecer uma coerência interna, que se mostra externamente, porque ele procura viver o que sente, falar o que pensa e sempre a cada instante, "tirar o que se espera dele".
Kierkegaard, tanto quanto nós, viveu numa época onde a massificação, o fazer tudo igual, o desvalor do indivíduo era fomentado e fortalecido. A pessoa tinha que seguir as convenções gerais, em detrimento da sua própria individualidade. Porém, aquele filósofo sempre disse que o que importa é como o indivíduo, na sua particularidade, na sua concretude e na sua unicidade, faz com a sua existência. Existência que para Kierkegaard não era o mero ato de respirar, de comer ou se vestir, mas "um ato de escolher em ir na direção de ser". A direção daquilo que o indivíduo elegeu como sendo o seu objetivo, o seu projeto. Existir é ir em direção às escolhas individuais. É sair da prisão da mesmice, da igualdade e da uniformidade, que tanto sofrimento causa e, partir em direção à auto-construção da vida individual.
Quantas pessoas que não quiseram "tirar o esperado" e assumiram o desespero-fraqueza. Acabaram casando com quem os outros esperavam que ela se casasse, ficaram no emprego ou na profissão que esperavam ela trabalhasse, viveram a vida que esperavam que elas vivessem e sofreram existencialmente de uma maneira tão profunda como elas não esperavam para si.
O que falta aqui ? Falta a vida original, a vida de autoria do próprio indivíduo. A pessoa que abraça o desespero-desafio e quer ser ela própria, não se conformar em ser um observador, mas faz-se um ator e autor da sua própria história. Assume a responsabilidade total de que a sua vida depende de si mesma. Que ela é energia viva e auto-determinante. Que ela nunca é, mas é sempre um vir-a-ser, em constante transformação, um devir.
Kierkegaard demonstrou durante a sua vida, que os outros sempre esperam de nós que sejamos tais quais eles planejaram que nós fôssemos. Não corresponder essa visão é um ato de coragem e de desespero, pois é preciso quebrar toda uma "história" pré-articulada e construir uma que é do seu jeito único. Para tanto, é preciso que o indivíduo tenha auto-determinação, auto-dedicação, auto-disciplina e auto-desprendimento. Auto-determinação é a intenção do indivíduo de ser ele mesmo, capaz de de afirmar e efetivar os seu projetos, sonhos e desejos. Ele se determina e não permite que ninguém faça isso por ele. Auto-dedicação é o movimento da pessoa no sentido de se entregar à realização dos seus objetivos.
Auto-disciplina é a postura que o indivíduo tem de seguir um método para conquistar as suas metas. O método é um caminho, um meio. E o meio mais eficaz que eu conheço para ser uma pessoa mais integrada, mais própria, mais dona de si, é a psicoterapia.
Auto-desprendimento é um ato contínuo no qual o indivíduo aprende a lidar com a escolha. Sendo a principal "escolher-se". Escolher é aprender a abraçar algumas coisas e desapegar-se de tantas outras, que não resultam no melhor para si.
Essa é a visão de triunfo de Kierkegaard sobre as crises existenciais, o aprendizado a cada dia do desespero-desafio, do ato de educar cada um a si mesmo sobre quem ele é e pode ser.
Para que você possa refletir sobre tudo isso, quero lhe contar uma pequena história, cujo título é "O PINTOR SEM NOME":
Era uma vez um camponês sem nome, que não sabia caçar, nem pescar, não sabia criar animais, nem plantar seu alimento, não sabia costurar, nem cozinhar. Para falar a verdade, ele não sabia fazer nada, nem um nome possuía. Dependia sempre da boa vontade dos outros camponeses para se alimentar e se vestir. Ninguém o chamava para caçar ou pescar, porque ele sempre voltava de mãos vazias. Ninguém o chamava para vigiar as ovelhas ou ajudar na plantação porque ele era descuidado e deixava os animais fugirem ou as plantas morrerem. Não tinha amigos, nem namoradas. Certo dia o camponês resolveu ir para a cidade com o pensamento de que lá iria conseguir realizar algo. Pegou seus pertences e um pouco de comida e saiu do povoado ruma à cidade. Na cidade, não conseguiu arranjar trabalho algum. Na construção civil, não agüentava carregar tanto peso. Nas lojas, não conseguia vender nada porque não dava a devida atenção ao clientes. Nas lanchonetes nunca acertava de quem era o prato pedido. Depois de várias tentativas, frustrado, o camponês sentou-se num banco de uma praça qualquer e lá ficou. Ficou sentado naquele banco por muitos dias, recebendo alimentos e roupas de pessoas muito nobres. Numa manhã, o camponês estava ouvindo o canto dos pássaros, quando, ao seu lado, pousou um pássaro de beleza rara, que ele nunca vira antes. E, para o seu espanto maior a ave perguntou: O que está acontecendo com você? Por que você fica sentado neste banco e nada faz? Não faço coisa alguma porque não sei fazer nada. Então não se desespere! Falou o pássaro. Vou dar a você um presente e com ele você poderá realizar algo para si. O pássaro entregou ao camponês o presente e, novamente, ele se espantou e disse: "Um pincel!?" O que eu farei com ele? Primeiro você deverá observar tudo o que está à sua volta e também aquilo que estiver em sua consciência. Quando você colocar a ponta deste pincel em uma tela de pintura, você irá produzir pinturas maravilhosas. Porém, digo, nunca revele o seu segredo, pois você perderá o pincel! O homem fez o que o pássaro falou para ele. Arranjou algumas telas de pintura e uns tubos de tinta que estavam numa lixeira, assim, começou a pintar. Procurava perceber tudo à sua volta e pintava tudo que via. As pessoas que passavam pela praça, admiravam aquelas obras lindas e, o camponês, as vendia para quem estivesse interessado em adquirir suas pinturas. E, assim, os dias foram passando... O camponês continuava pintando, ganhando o suficiente para se alimentar, se vestir e para comprar telas e tintas. Um dia, uma mulher bastante interessada nas pinturas do camponês, perguntou-lhe de onde vinha tanto talento. O camponês, admirado com a beleza daquela mulher, não hesitou em revelar o segredo do seu sucesso. E, naquele instante, o pincel quebrou-se em mil pedaços. O camponês ficou muito triste. A mulher falou ao camponês tentando consolá-lo: "Você foi espontâneo, mostrou os seus sentimentos e não teve medo de revelar o seu segredo. Mas agora eu não posso pintar, não posso fazer mais nada. Disse o camponês chorando. Pode sim! Pare de se desesperar! Compre outro pincel e recomece o seu trabalho! Disse a mulher. Você não entende nada! O pincel que eu tinha era mágico! Disse o camponês. A mulher, não satisfeita com aquela postura do camponês, pegou-lhe pelo braço e foram à uma loja onde comprou um outro pincel para ele. Depois, de volta à praça, a mulher exclamou: "Vamos lá meu rapaz! Experimente o seu novo pincel! Você só precisa de duas coisas: Ser você mesmo e confiar em si próprio!". O camponês começou a pintar e descobriu que ele realmente conseguia fazer isso por si mesmo. Ficou tão feliz que nem reparou que aquela linda mulher, que ajudou-lhe a conquistar a sua auto-confiança, transformou-se no mesmo pássaro que lhe dera o pincel "mágico", voou sumindo na imensidão azul do céu. Pelo que se sabe, o camponês continua naquela praça pintando seus maravilhosos quadros, fez muitos amigos e está se auto-sustentando. Todavia, ele continua sem nome. Por isso, todas as suas obras ainda são assinadas da mesma maneira: "PINTOR SEM NOME".
Por isso que Kierkegaard afirmava: "Todo desespero é fundamentalmente um desespero de sermos nós mesmos."
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